Ciência e Literatura

Recentemente escrevi um texto aqui dizendo que a principal função da literatura era de nos fazer compreender o outro e a nós mesmo, o indivíduo e o mundo em que vivemos, em todas as suas facetas. Não excluí, logicamente, outros fatores como o prazer que sentimos na leitura, o desenvolvimento da língua, a expressão do mundo íntimo do poeta, etc. Enfim, a questão é que isso acabou me levando a uma pergunta: como esse conhecimento oferecido pela literatura difere daquele da ciência? Bem, isso é que vou tentar responder hoje.

A seguinte frase de Octavio Paz já é um bom começo: “a poesia revela este mundo, cria outro”¹. Exato, a obra literária é como um microcosmo, criado à semelhança daquele de que ele trata. O poeta vê além do senso comum e cria, aproxima-se de Deus. E ele busca uma criação tão completa e verossimilhante quanto possível, que basta em si mesma sem precisar explicar nada, que significa mais do que diz. Por essa razão que um personagem de Rubem Fonseca afirma: “a poesia tem a vantagem de ser misteriosa mesmo quando diz que dois e dois são quatro” (“A Vênus de Botticelli”, do livro “Secreções, Excreções e Desatinos”). Ou seja, ela ultrapassa a linguagem, seu próprio instrumento de trabalho. Não explica, manifesta o mistério, toca o leitor com ele.

Como microcosmo, miniatura do nosso mundo, a obra literária não se atém a nenhum campo específico de conhecimento, mas serpenteia por entre eles. Seu conhecimento é multidisciplinar, tudo se cruza na literatura. Afinal, como não dizer que aprendemos um pouco de biologia marinha em Moby Dick, de história e filosofia na Montanha Mágica, de psicologia com Proust e Dostoievski, e até mesmo da arte da luta com facas com Rubem Fonseca (A Grande Arte)? Contudo, ela quer é o todo, o pleno e o universal. Não foge da ambigüidade das palavras e do mundo, está à busca de.

A ciência, de maneira geral, fragmenta seu objeto de estudo, ordena, cataloga, define, disseca. Embora que, por vezes, ainda conjugue áreas de conhecimento. Tenta explicar e deixar absolutamente claro cada detalhe, tende ao específico, a limitar aquilo que estuda, excluir o ambíguo. De maneira diversa, a literatura não procura exatamente por definições, nem limites. Também não exige que o leitor tome posicionamento algum. Unicamente o lança num microcosmo criado através da ficção, da palavra trabalhada e enriquecida (pois “não atenta contra a ambigüidade”¹, busca sua origem primitiva¹, mágica), do simbólico, em que sorrateiramente põe em movimento as roldanas mais íntimas dessa engenhoca que é a alma humana. Tal movimento é um efeito indefinido que pode perdurar por anos, que mexe conosco e muitas vezes nem sabemos explicar por que nem como. Só aos poucos digerimos a descarga elétrica que um livro atira contra o nosso peito.

No poema, no conto, no romance ou seja lá em que gênero literário, compartilhamos experiências, dores, gozos, angústias, pensamentos, culturas. Vivenciamos o que está dentro e fora da nossa vida. O contato com os personagens ou com o eu lírico induz à compreensão do ser humano. Adentramos no interior de todos os tipos de pessoas, em todos os tempos e situações. Por essa razão que Edgar Morin fala no “milagre do romance”, capaz de “revelar a universalidade da condição humana ao mergulhar na singularidade de destinos individuais localizados no tempo e no espaço”². É também porque Octavio Paz afirma: “o poema é um caracol onde ressoa a música do mundo, e métricas e rimas são apenas correspondências, ecos da harmonia universal”¹.

Deste modo, a literatura ensina a viver, apresenta o mundo, o indizível (porque ainda não conhecido¹) que cada um tem dentro de si, e igualmente sensibiliza para o que não é o “eu” ou o “nosso”. Através dela, singramos os mares com Ulisses, dançamos com Zorba, revisitamos a infância com Tom Sawyer, experimentamos a secura no corpo e a beleza do sertão com Riobaldo, choramos com o Judas de Thomas Hardy, sentimos na boca o gosto de arsênico com Madame Bovary. Na literatura, nada vem por explicações, definições ou limitações (necessárias na ciência). É na pele do outro que aprendemos o que é o ser humano e aquilo que o cerca. E, sendo assim, o caminho que a literatura percorre através dos saberes é completamente livre, aleatório, sem amarras para desvendar tudo que molda o Homem.

 

1 PAZ, Octavio. O Arco e a Lira. Rio de Janeiro: Nova fronteira, 1982.

2 MORIN, Edgar. A Cabeça Bem-Feita. 8ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003.

 

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